quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

domingo, 18 de março de 2012

Romance da Vidência (Cordel de Guilherme de Faria)


Romance da Vidência
(Cordel de Guilherme de Faria)



1
Preparem a sua emoção
Para um caso do Destino
Vou usar todo o meu tino
Pra cantar sem violão.

2
Só preciso achar o tom,
Que a música deste poema
Cria seu próprio sistema
De silêncios e de som.

3
Havia nesta divisa
Uma cigana arretada
O seu nome era Rafisa
Parecia alumiada.

4
Tinha o dom da profecia
Mas, cassandra malfadada
Era sempre acreditada
Só depois que acontecia

5
Aí houve o incidente,
Que chegou no seu terreiro
Um capiau renitente
Que era um pobre ferreiro.

6
Vinha montado sem sela
E embora fosse cascudo
Era bonito e parrudo
Sem papos nem xurumela.

7
Rafisa (quase esquecia)
Era um pouco desgrenhada,
Também tinha a latumia
De uma Medusa da estrada.

8
Quer dizer: era bonita
E até muito faceira
Descontada a cabeleira
E a saia sarapintada.

9
O matuto desmontou
E tirou o chapéu de couro
Parou um pouco e olhou
Com aqueles olhos de mouro.

10
“Siá Rafisa, venho vindo
De muito longe, seguindo
A fama de vosmecê,
Queira pois me recebê.

11
Venho da Pedra Preta
Um raso onde num chove
Desde a noite do cumeta
Que ainda o povo comove.

12
Mas num vim pedir trovão
Que num é de sua alçada
É lance de coração
Ou de vida amargurada.

13
Me deixa entrá que lhe esprico
Siá Rafisa, ocê me escuta,
E se falo, não discuta
Que se calo, me comprico.”

14
Rafisa olhou o matuto
De cima a baixo e botou
A mão no colo e virou
Com aquele ar arguto

15
E na mesa da cozinha
Sem a bola de cristal
Sentou depois da voltinha
Com seu jeito sensual.

16
“Como digo a vosmecê
Ando muito agoniado
Duma paixão sem mercê
Por um sonho inalcançado.

17
Ela se chama Lazinha
E nem sabe que eu existo,
Filha do coroné Xisto
Tar quar uma princesinha.

18
Quando passa amuntada
Joga moeda no ar
Pra meninada catar
No meio da gritaiada.

9
Um dia chegou na frágua
Pedindo um pouco de água
Bebeu sem me oiá, pensei,
Ou fui eu que não oiei

20
A não ser, pro seu pezinho,
Carçado cuma alpercata
Fina, de ouro e prata
Mostrando aqueles dedinho

21
Que prestei muito sentido,
Para minha perdição
O segundo mais comprido
Que o primeiro, como a mão.

22
Depois disso, ó minha mágoa,
Só brinca de esconde esconde:
Já não quis mais pedir água
Na casa deste visconde.

23
Siá Rafisa, me diga
O que faço pra arrancá
Do meu peito essa urtiga,
Pra dessa paixão me livrá?”

24
A cigana reparou
Nos olhos do capiau
Botou cartas e apontou
Um modesto dois de pau.

25
“Hóme,” disse a cigana,
“Tá escrito aqui tão claro,
E essa carta não me engana,
Que não vou nem cobrar caro.

26
A coronelinha vai
Beber água em sua palma
Mas num posso dizer mais
Pelo bem da minha alma.”

27
O matuto se afastou
Semeado de esperança
E pra sua forja voltou
Terminada a sua andança.

28
Uma semana passada,
Voltou ele galopando,
Parecendo alma penada,
E chegou logo gritando:

29
“Siá Rafisa, bota a sorte
Que quero o dia saber
E a hora da minha morte
Para o quanto vou dever

30
Porque de hoje não passo:
A moça veio beber
Da parma deste palhaço
Mas foi de tanto sofrer

31
No momento do trespasso.
Caminhou mais de três légua
Sangrando quase sem trégua
Pra vir morrer no meu braço.

32
Baleada no pulmão
Por um pretendente em mágoa,
Morreu bebendo da água
Da parma da minha mão!”

FIM

12/07/2001

Romance do Tuím (cordel de Guilherme de Faria)

Romance do Tuím
(cordel de Guilherme de Faria)


1
O menino Tuím
Dirigiu-se à taperinha,
Parou de fungar assim
Que viu a sua cabrinha.

2
Anaís, o nome dela,
Que dava leite, coitada,
Pr'um cabritinho e pra ela:
A Gerusa adoentada,

3
Que jazia na rede
Co'a aquela febre malsã
Desde ontem de manhã
Com delírio e muita sede.

4
Viviam num universo
Restrito mas não menor
Pois o terreiro disperso
Era o Sertão ao redor,

5
Esse espaço infinito
De tanta fábula e mito,
De tanta necessidade
Em sua realidade.

6
O fogão que era de lenha
Esquentava o café
Que era feito só de fé,
Ralo como a resenha

7
Do Almanaque da Sé
Que era a só mensagem
Que chegava como aragem
A esse mundinho até.

8
Tuím ficou só olhando
A Gerusa delirando
C’o olho dele parado
Muito grande, arregalado

9
De menino de Sertão
Que ocultava por dentro
Um olhar vindo do centro
Da alma e do coração.

10
Tuím pensava forte
Na irmã e sua sorte
Que ele creía estar
Sob proteção do lar

11
E da sua também
Desde que cobrira bem
Os olhos da pequeninha
Pr’ela não ver o que vinha

12
Naquele parto sangrento
De sua mãe na esteirinha
Gritando, como no vento
Fazia a sua cabrinha.

13
Agora olhava sozinho
Até que a Gerusa foi
Saindo sem dizer “oi”
Da rede e do corpinho.

14
Tuím a acompanhou
Na rede até o outeiro,
No solo que se elevou
Só para aquele canteiro

15
De cruzes todo brotado
Como peito cravejado
Das balas de um destino
De sentido insuspeitado.

16
Ali já estavam dormindo
Mais de um irmãozinho,
A mãe e até o paínho,
Uma tia e o Laurindo,

17
Moço que fora um irmão
Para o Tuím por um tempo
E deixara o convento
Pra cuidar de sua mão

18
Que o Tuím machucara
Ao brincar c’uma sovela
Enferrujada e ficara
Perto de ficar sem ela.

19
De algum modo pegou
No moço a infecção.
Tuím perdeu um irmão,
O outeiro outro ganhou.

20
Agora Gerusa ia
Ali dormir ao seu lado
Pois co’aquela companhia
Ninguém ficava acordado.

21
Mas aquela plantação
Prometia só crescer,
Havia ainda um irmão
Mais velho para perder

22
E uma tia que, coitada,
Vagava sem energia
Sonhando meio acordada
Com um vaqueiro que havia

23
Que ela pensava um barão
Vestido com uma couraça
Que era de aço sem jaça
E não de couro o gibão.

24
Tuím então se jurava
Sair do lar e partir
Antes que fosse dormir
No outeiro que o esperava.

25
Voltou até a tapera
Juntando as miserinhas:
O seu pião de madeira,
O canivete e as bolinhas,

26
Enterrou-as no terreiro
Afastando o espevite
De Anaís que um certo cheiro
De cola fazia apetite.

27
Depois calcou o lugar
Para só ele encontrar
E reentrando fez a trouxa
Com quase nada, até frouxa.

28
Pendurou-a no ombro
E passou pela cabrinha
Que o olhava sem assombro
Como se fosse advinha

29
Enquanto ela era olhada
Num mesmo olhar que continha
O casebre e a cabrinha,
Com a cabeça voltada

30
Andando pra frente ia
Com um andar que ninguém vira.
Co’esse jeito parecia
O andar do Curupira.

31
Até que afinal virou
O rosto também pra frente
Co’aquele passo de gente
Que o destino enfrentou.


32
Andando naquela planura
Sem fim, que o engolia
Para quem somente o via
De uma mesma postura

33
Pois sua estória não ia
Acabar na travessia:
O pequeno sertanejo
Seria agora um andejo

34
E haverá de chegar
Na são Paulo, capital,
Pra de novo começar
Uma saga emocional

35
Que havera de vencer
Porque já nascera forte
E sendo cabrinha do Norte
Tinha o que dar e vender.

FIM

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Romance do Cordelista (Cordel de Guilherme de Faria)



Romance do Cordelista
(Cordel de Guilherme de Faria)
1
Senhores, senhoras, povo:
Escutai minha oração.
Não é prece, não é novo,
Mas me vem do coração!

2
Pra me fazer entender
Depus pincel e paleta,
Voltei de novo a escrever
E me tornei um asceta,

3
Pois que para escrever
É preciso aceitar
Já não ter o que vender
E a pobreza acatar.

4
É preciso amar o verbo,
Com a palavra pintar,
Os quadros continuar
Num recurso tão acerbo

5
Pois as cores na escrita
Têm sua visão restrita
À pura imaginação
(se é que é restrição)

6
Agora sou cordelista
Mas como tal sou artista:
Pinto a vida e sua emoção,
Vou mais longe, na canção.

7
Viajo por esse mundão
Vasto do meu sertão,
Que eu não via tanto céu
Somente com meu pincel.

8
Ando com vaqueiro rude
Pela caatinga bravia,
Com as telas nunca pude
Perpetrar essa ousadia.

9
Vivo a vida das donzelas
E os amores que eram delas:
Coronéis, frades, bandidos
E desejos escondidos.

10
Sou um monge, sou palhaço
E passo a ser o que faço,
Com a pena a discorrer
Sobre o tema que escolher.

11
Percorro as terras do Norte
Que eu não via no ateliê,
Mas que agora a alma vê
Sem precisar de transporte.

12
Tenho toda a ventura
De viver tanta aventura
E pouco risco correr
De cruelmente morrer

13
A não ser de fome mesmo
Sobre a mesa do estúdio
Se houver muito repúdio
E faltar pão com torresmo

14
Se o povo não apreciar
O que tenho pra contar
Ou se não quiser pagar
Folheto de xerocar.

15
Sou pirata de mim mesmo,
A mim mesmo editando,
No xerox copiando
E vendendo meio a esmo.

16
Mas quanto prazer eu sinto
Isso eu confesso, não minto
Fazer o homem comum
Pagar por um simples pum

17
Mas da alma e seu delírio,
Por vezes branco qual lírio
Às vezes negro sombrio
Como um tenebroso rio.

18
E assim pedindo passagem
Aos meus novos galeristas
Não ratos de vernissagem,
Novos-ricos arrivistas

19
Mas àqueles a quem pena
Fala mais do que pincel,
A quem a imaginação plena
É livrada no Cordel!

20
Passei a viver profundo
Um novo ciclo de vida
Com todas as vidas do mundo
Com todo amor, toda lida,

21
Cavalgadas no sertão,
Batalhas por vã querência,
Um ferreiro e sua paixão,
A cigana e sua vidência.

22
Duelos de coronéis,
Princesas e seus anéis,
Amor paixão quase tudo
Eu posso viver sem estudo

23
Pois não preciso saber
Sobre o que vou escrever,
Pois esse é o mistério régio
De escrever por sortilégio.

24
"Não sabia que sabia!"
É com o que me defronto
Oposto à filosofia
"sei que não sei" e pronto.

25
Vou então finalizar
Para dormir e acordar
Neste perpétuo sonhar
Que não parece acabar,

26
Pois o que é o versejar
Se não um sonho acordado
Ou então dormir de lado
Para ao menos não roncar?

27
Deixem aos porcos o ronco,
Paulo Afonso no sertão
Ou pra quem serra tronco,
Ou onça sussuarão...

28
Mas estou já derivando
É melhor ir despedindo
Pois um sujeito é bem vindo
Quando chega e sai andando.

30
Assim fecho o escarcéu
Deste meu auto-retrato
Vamos pois fazer um trato
Deixa eu passar o chapéu

31
Que prometo vou embora
Pra quem já se desespera
Que lá em casa me espera
A santa da minha senhora...

FIM

sábado, 7 de janeiro de 2012

ROMANCE DA FILHA ROUBADA (cordel de Guilherme de Faria)


ROMANCE DA FILHA ROUBADA

(cordel de Guilherme de Faria)

1
Ouça agora povo eleito
Que de onde vem tem mais.
Sai da alma, sai do peito
(já não sei de onde sais...)

2
Me refiro à inspiração
De contar estas estórias
Que são a motivação
De viver tantas inglórias

3
Pois se me tornei vate,
Trovador, poeta ou bardo,
Devo em parte ao gesto tardo
De deixar falso combate

4
E aceitar a pobreza
(financeira, não da alma)
Pois verdadeir riqueza
É paz, fortuna que acalma.

5
Dito isso vou ao caso
Que havera de contar,
Repasso a estória e faço
Correr por dentro o olhar:

6
Naquele solar antigo
Na varanda pro pomar
Estava meu velho amigo
Sua estória a me contar,

7
Sentado na sua cadeira
De balanço a balançar,
Sua voz e sua maneira
Ainda posso lembrar,

8
Contando como perdera
Sua filha e sua mulher
Pr'uma "falange guerrera"
Que as quisera colher.

9
Eram jagunços de um tal
Capitão Valença chamado
Que apeou seu bando armado,
Dizendo: "Não leva a mal"

11
"Coronel, somos de paz,
E só queremos pousada.
Se és um homem sagaz
Nos darás , e uma montada"

12
"Pois precisamos de uma
Pr'uma carga que sobrou
Quando perdemos a bruma,
Égua baia que afogou"

13
"Quando atravessamos rio
Com ela bem crregada
De feijão farinha e mío
E a égua foi levada."

14
"Acreditei, nem temera,
Eu já estava acostumado
A dar guarida pra fera,
Jagunço e pau-mandado.

15
Já hospedei cangaceiro
Aquele "Diabo Louro",
Corisco, o rei do berreiro,
Que girava como um mouro.

16
Mas nunca fui um herdeiro
Do medo de quem hospedei,
Pois no sertão, um só rei:
Hospedado e hospedeiro.

17
E o tal capitão Valença
Não parecia feroz,
Não criava desavença,
Nem sequer erguia a voz.

18
Naquela noite minha filha
Que era moça muito pura
E era uma maravilha
De beleza e de candura

19
Eu escondi no porão
Onde dormiu assustada
(Não convinha mostração
Por causa da jagunçada).

20
Minha mulher servia a mesa
Pois já era passadota,
E eu com a mente presa
No porão e na filhota.

21
Talvez foi isso então,
Meu olhar denunciou
Uma tal preocupação
Que no meu porão ficou.

22
Então depois no meu quarto,
Insone de olho aberto,
Tendo a jagunçada farto
E espalhado ali tão perto,

23
Eu tive a agonia
De não saber, de fato,
O que além ocorria,
Sem poder sair do quarto.

24
Mas então lá pelas cinco
Eu escutei um relincho,
Levantei, saí da cama,
Que não dormi de pijama

25
E corri pra onde iam,
Trombando com as cadeiras,
Pisando naquelas esteiras
Onde já não dormiam

26
E pude ver da varanda
A tropa toda montada
A minha égua selada
Com elas meio de banda,

27
Minha mulher e meu tesouro
Levadas nesse roldão
No meio de um pelotão
Como para um matadouro.

28
Então gritei no vazio,
Abandonando o solar,
Vaguei na caatinga e no rio,
Nunca canso de vagar.

29
Mas sempre pra aqui retorno
E desço até o porão,
E na esperança eu torno
A olhar o seu colchão.

30
Duas vezes, afinal,
Logrei vê-la adormecida
Sobre o leito e no quintal
Debaixo de um pé de cidra.

31
Ela estava tão bonita,
Tão entregue em seu sono
Como se nunca a desdita
Fosse atingir o dono

32
Desta casa maldita
Agora surda e vazia."

Que só tinha uma visita,
Que era eu, que o ouvia...

FIM

06/03/2005

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Sobre o poeta de Cordel GUILHERME DE FARIA

GUILHERME DE FARIA é artista plástico profissional desde 1962, vivendo exclusivamente de sua arte desde então, com 50 anos de carreira ininterrupta, dedicados à pintura, ao desenho e à gravura. Tendo realizado centenas de exposições individuais e coletivas, no Brasil e no exterior, suas obras, que se distribuem em diversas fases, estão presentes em grandes coleções particulares , nacionais e estrangeiras, e em alguns museus brasileiros importantes como MAM, o MASP, e o Museu de Arte Brasileira da FAAP.
A partir de Julho de 2001, Guilherme, sabendo-se um contador de histórias nato (fato até então conhecido somente por seus amigos e parentes), resolveu dedicar-se também à literatura. Desde aquela data, não parou mais de escrever diariamente, tendo produzido um livro de contos “autobiográficos-delirantes” denominado “O Navio sob os Telhados”; um livro de poemas., um gracioso “Sonetos da Sertaneja¨”, um livro de estórias sertanejas em prosa, que ele chamou “Contos do Sertão”, todos inéditos, por serem recentes, e ainda não submetidos à editoras.. Mas considera publicado um livro de estórias em versos rimados, que realmente invadem o terreno da poesia, chamado ROMANCES DE CORDEL, que ele divulga em forma de folhetos ilustrados por ele mesmo, no estilo das xilogravuras populares do Nordeste.
A qualidade dos textos e das ilustrações vem notabilizando esse trabalho. O autor conseguiu uma grande homogeneidade de qualidade nos 100 poemas narrativos (até o momento), cujas estórias originais, de sua imaginação, revelam uma extraordinária fluência de inspiração, com linguagem, espírito e ambiência autenticamente sertanejos, sobre o fundo da caatinga nordestina, em plena seca. Trata-se de um fenômeno, pois o autor é paulistano, dos Jardins, sem ascendentes nordestinos, nascido e criado, como ele diz, “à beira da rua Augusta, esse “rio inglório”...
O poeta atribui esse “surto” tardio de inspiração sertaneja à experiência de uma expedição de sete dias realizada em 1970, pelo sertão de Pernambuco e Paraíba, numa perua cujo motorista que o convidou, tinha sido contratado para recolher mestres violeiros e repentistas, para conduzi-los até um grande congresso desses virtuoses que seria realizado em Campina Grande, na Paraíba. Guilherme conta essa estória, de maneira mítica, como “a viagem da procura do Pavão Misterioso”. Trinta anos depois, essa experiência única, decantando-se no espírito do poeta, e cristalizando-se, produziria o nascimento deste cordelista inusitado, cujos poemas, extremamente profundos, originais e belos, freqüentemente trágicos, mas ao mesmo tempo de grande lirismo, contendo também momentos de muito humor, poderíamos chamar de pequenas obras-primas.
O autor ainda teve a excelente idéia de reuni-los numa atraente caixinha de madeira, com título e ilustração na tampa, e original fecho de cadarço de couro, evocando os dos gibões dos vaqueiros; que ele, ironicamente denominou “Kit Cordel”, objeto que vem encantando as pessoas que o conhecem, podendo-se dizer que trata-se já de um novo sucesso do pintor e poeta. Essa obra foi adquirida já pela Biblioteca do Congresso em Washington, a maior e mais importante biblioteca do mundo, e por bibliotecas de universidades americanas, como a New Mexico University Library , USA., entre outras. (Vide “New Aquisitions List “ June 2005, Guilherme de Faria, Romances de Cordel), no Google.
(Texto de A. W.)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

ROMANCE DA LOUCA (Cordel de Guilherme de Faria)

ROMANCE DA LOUCA
(Cordel de Guilherme de Faria)


1
Aquietem-se corações
E mentes, pra acompanhar
A estória e as emoções
Que agora passo a contar.

2
Sou viajante e poeta,
Andando aí a esmo,
Mas não sou nenhum asceta,
Como muito, com torresmo.

3
Às vezes em casa de pobre
Outras também na de rico;
Novela de horário nobre,
Metrô na hora de pico...

4
Vou colhendo meu acervo
Na boca mesma do povo,
Alguma vez dou no nervo,
Percebo ser um estorvo.

5
Mas nessa minha andança
Fui bater um dia, à toa,
Numa casa em vizinhança
Dessa que não destoa,

6
Gente humilde e comum
Mas vista na redondeza
Como de fosse algum
Refúgio de alta nobreza.

7
Percebi desde o começo
Sua fidalga maneira,
A fala sem um tropeço
De quem sequer vai à feira.

8
Mas o que mais me causou
Estranheza, foi a espera
Por alguém que não chegou
Senão quando a ceia já era:

9
Jovem mulher de uns vinte
Que saiu de um quarto ali
Vestida até com requinte
Num passo que nunca vi.

10
Dirigiu-se à janela
Com olhar quase febril
Consultando através dela
A lua primaveril.

11
Depois de um longo suspiro
Sem sorrir, voltou pra dentro,
Seu passo como um respiro,
Seu espaço como um centro.

12
A matriarca então pediu
Logo a minha licença
E depressa a seguiu
Saindo da minha presença.

13
Depois de um longo serão
Em que não pude cantar
Pois não havia canção
Que então viesse a calhar

14
E nem "deixa" para um causo
Pois o clima era de espera,
De suspense e não descauso,
De palácio e não tapera.

15
Fui afinal conduzido
Para um quarto c'uma vela,
Muito limpo e produzido
Como se fosse uma cela.

16
De convento ou monastério,
Já com a vista turvada,
Promessa de refrigério
Para a alma perturbada.

17
O sono não foi dos bons
Cercado que estava ali
De uma suíte de sons,
Alguns que eu nunca ouvi.

18
Até que lá pelas três,
A julgar por certo galo
Que cantou sem intervalo
Inconformado, talvez,

19
Percebi de novo o passo
Macio e deslizante
Da moça cujo compasso
Era frio e preocupante.

20
Então ouvi um gemido
E o lamento lá do fundo
De um ser talvez ferido
De uma dor que era do Mundo,

21
Logo seguido de um canto
Triste como um cantochão,
Pavana ou acalanto
Para um defunto no chão.

22
E dessa infanta funérea
Eu olhava pela fresta
Não mais a presença etérea
Mas um peso em sua testa

23
Que inclinada para o chão
Soluçava de dar dó
(sugerindo a tal canção
Qual no pescoço uma mó.

24
Pois naquela madrugada,
Ai dela! foi encontrada
No ribeirão afogada,
Por grande pedra ancorada.

25
E eu que não pude nada,
A não ser testemunhar
Uma tragédia lascada,
Saí dali sem falar.

26
Foi a única noitada
Esta que lhes contei
Em toda a minha jornada
Em que nem sequer cantei.

27
Mas ainda ouço o canto
Por dentro, que não o meu,
A dor de amor e o encanto
De um ser que em vida morreu

18
Vivendo sua própria morte
A cada noite tão longa,
Em que o destino, a má sorte
A hora estira, prolonga

29

Na espera eterna do amor
(e talvez não tenha paz
em sua morte, jamais)
Ó sorte, ó sina, ó horror!...

FIM

27/11/2004

terça-feira, 5 de abril de 2011


Capa do folheto com xilo do autor

ROMANCE DO MOÇO GUEI

(cordel de Guilherme de Faria)

1
Abram-se as cortinas
Deixem eu passar o som;
Alô, alô minhas meninas
Vai começar a função!

2
Mulher bonita não paga
Senta aqui na coxia
Após o show se houver vaga
Iremos pra hospedaria.

3
Sou um contador de estória
Mas chegado em putaria;
Contar causo é minha glória,
Mulherada é minha alegria.

4
Já andei por esse mundo,
De teatro em carroção,
Circo, barco, caminhão.
Trem de ferro e trem imundo.

5
Me apresento aonde quer
Que haja um pedaço de pão;
Serve um beijo de mulher
Serve um gole e uma canção.

6
Qualquer das coisas gostosas
Podem ser a minha paga.
Em troca eu faço glosas
Que o povo de rir se caga.

7
Vou contar pra divertir
Um causo bem verdadeiro
Que embora faça rir
Mexeu com meu ser, inteiro.

8
Foi num circo em que andei,
O mais mambembe eleito,
Mas que tinha um moço guei
Que era um ser quase perfeito.


9
Sua beleza feminina
Era maior que a delas,
A cintura muito fina,
Ancas redondas e belas.

10
Seios como alabastros
Que brilhavam como astros
Quando naquele fio bambo
Desnudava em pleno mambo.

11
Que pernas, que maravilha!
E os pesinhos, então?
Pele que sente a ervilha
Debaixo de um colchão...

12
Esse moço, eu confesso,
Por ele me apaixonei,
Mas fiquei meio possesso,
Que não o sabia guei.

13
Eu acreditara tanto
No seu dom de transformar!
Sua mágica, meu espanto,
Era a mulher imitar

14
Mas com tanta perfeição
Que sendo ele um poeta
Transcendera a imitação
E ultrapassara sua meta

15
Criando o mais belo ser
Que eu já vira até então,
Estragando o meu ver
Das mulheres como são.

16
Agora vejam, amigos,
Que triste situação:
Meus amores mais antigos
Caíram, foram ao chão.

17
Nada pude comparar
Com aquele moço guei,
Que era princesa, ou rei,
Não saberão sem corar.

18
Pois ele ou ela me amou
Igualmente consternado;
Não sabia quem ficou
Realmente apaixonado:

19
A mulher que vi primeiro
Ou o guei que transformou
A vida num picadeiro
E meu coração encantou.

20
Não vou contar o desfecho,
Que não tenho intimidade,
Nem tampouco tal desleixo
Com a platéia da cidade.

21
Mas asseguro, amigas,
Que embora eu ame a mulher
Eu vi algo, vi um ser
Que ultrapassou as antigas,

22
Aquelas mulheres das fitas
Ou de quadros de museu,
Que eram mais que bonitas:
Faziam crer um ateu.

23
Eu soube então, acredito,
Que aquele ser bendito
Era o tal “Hermafrodito”
Que já houvera no Egito

24
Ou na Grécia, tanto faz
Numa Era de Paz
Antes do deus guerreiro
Rachá-lo ao meio inteiro.

25
Por isso, peço licença,
Que hoje não tem função
Vou pro “Hotel Regença”
Depois volto à gozação...

FIM

06/03/2005

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Luz eu tô chegando..

Para o Ju Corte Real, que me desejou LUZ PAZ AMOR:


Luz eu tô chegando, Paz tô quase, Amor me sobra...
Só falta o comerciante que em mim cobra
A ausência absoluta e lamentável,
Pois sempre achei indigna da Obra
Sujá-la com o carimbo de "Rentável"...
Mas se o coração está feliz
E se por pobretão ainda passo
Que importa ao mundo meu fracasso?
E isso é o meu sucesso quem o diz...

(Guilherme de Faria, ele mesmo)

domingo, 19 de dezembro de 2010

Romance da Moça do Ramalhete (de Guilherme de Faria)

Romance da Moça do Ramalhete)
(cordel de Guilherme de Faria)

1
Seu dotô, num tá lembrado?
Então deixa que lhe alembro
Foi aqui neste prado
No começo de Setembro

2
Esse campo de trigo
Parecia um tapete
E havia junto comigo
A moça do ramalhete.

3
O doutor se lembra agora? ..
Eu trazia o violão
Que comigo colabora
Mas até parece que não...

4
Eu cantava para a moça
Que afinal era minha noiva
Que parecia uma louça,
Fiz uma xilo c’o a goiva,

5
Tá aqui, ó, tá vista?
Esse é o retrato dela.
Tá meio tosco e revela
O bronco do retratista.


6
Mas o ramalhete, o tal
Num pode ter esquecido
Pois noiva de capiau
Sem a flor num tem sentido

7
Depois daquele manhã
Nesta mesma colina
A louça que era louçã
Nem era a mesma menina.

8
Suspirava, tava vaga
E tinha um olhar suspeito
Colocando a mão no peito
Enquanto nóis cavalgava.

9
E foi que um dia sumiu
Na véspera do casório
E eu de calça e suspensório
Perguntava se alguém viu.

10
Uma semana passada
Voltou e já num era ela
Tava meio amarela
Quer dizê, envergonhada.


11
Num me deu explicação
Mas ainda suspirava
E cantava uma canção
De moça que se afogava.

12
Ninguém esperava tanto
A gente só esperava
Passar aquele canto,
A dor que aquilo passava.

13
Mas ela sumiu de novo
Para só ser encontrada
Por um esforço do povo
De bater essa chapada

14
E encontrar ela no poço
Toda de branco vestida
Boiando como um destroço
E com a vida perdida.

15
Perdi o rumo então
Nem esperei o enterro
E pus o pé no estradão,
Miseráve como um perro.

16
E depois de errar um tanto
Lembrei do encontro fortuito
Que começou a vir muito
Nos sonhos pra meu espanto.

17
Então pra mim se fez luz
Na escuridão mardita
Mas lume que não conduz
Senão pra maior desdita.

18
E agora doutor me diga
O que fez da minha amiga
Que sortilégios usô,
Como foi que a enfeitiçô?

19
Mas num importa de fato
Sei que é home bonito
Só fumando nesse pito
Que nem tem cheiro de mato.

20
Vou então direto ao ponto
Traga padrinho e pistola
O meu é a minha viola
Dez passos dois tiro e pronto.

21
Nem sei se o dotô é culpado
Talvez de fato nem seja
Mas agora, mire e veja
Já faz parte do meu fado

22
E se não lhe tiro do sonho
Vai virar o meu demônio
E sairei do tristonho
Para um novo matrimônio:

23
O da loucura brabeira
Por isso prefiro o momento
De ficar como a peneira
Presente de casamento.

24
E se é bravata, tá feita
Num aceito um não de troco
Que me faz uma desfeita
Se num me trocá pipoco.

25
Já fiz o meu testamento
A viola e o ramalhete
Que deixo ao mundo e ao vento,
Tá escrito num bilhete.

26
E faço testamenteiro
Ao homem que me matar
Pra lhe dar o que pensar
Mesmo se sair inteiro.

27
E agora seu moço bonito
Vamo deixá de conversa
Pois quem muito tegiversa
Cai na mentira ou no mito.

28
Lhe espero nesta colina
Enquanto o dotô vai buscá
Na memória a tal menina
Que de amor fez afogá...

FIM

19/12/2010

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sobre o poeta de Cordel GUILHERME DE FARIA

GUILHERME DE FARIA é artista plástico profissional desde 1962, vivendo exclusivamente de sua arte desde então, com mais de 43 anos de carreira ininterrupta, dedicados à pintura, ao desenho e à gravura. Tendo realizado centenas de exposições individuais e coletivas, no Brasil e no exterior, suas obras, que se distribuem em diversas fases, estão presentes em grandes coleções particulares , nacionais e estrangeiras, e em alguns museus brasileiros importantes como MAM, o MASP, e o Museu de Arte Brasileira da FAAP.
A partir de Julho de 2001, Guilherme, sabendo-se um contador de histórias nato (fato até então conhecido somente por seus amigos e parentes), resolveu dedicar-se também à literatura. Desde aquela data, não parou mais de escrever diariamente, tendo produzido um livro de contos “autobiográficos-delirantes” denominado “O Navio sob os Telhados”; um livro de poemas., um gracioso “Sonetos da Sertaneja¨”, um livro de estórias sertanejas em prosa, que ele chamou “Contos do Sertão”, todos inéditos, por serem recentes, e ainda não submetidos à editoras.. Mas considera publicado um livro de estórias em versos rimados, que realmente invadem o terreno da poesia, chamado ROMANCES DE CORDEL, que ele divulga em forma de folhetos ilustrados por ele mesmo, no estilo das xilogravuras populares do Nordeste.
A qualidade dos textos e das ilustrações vem notabilizando esse trabalho. O autor conseguiu uma grande homogeneidade de qualidade nos 100 poemas narrativos (até o momento), cujas estórias originais, de sua imaginação, revelam uma extraordinária fluência de inspiração, com linguagem, espírito e ambiência autenticamente sertanejos, sobre o fundo da caatinga nordestina, em plena seca. Trata-se de um fenômeno, pois o autor é paulistano, dos Jardins, sem ascendentes nordestinos, nascido e criado, como ele diz, “à beira da rua Augusta, esse “rio inglório”...
O poeta atribui esse “surto” tardio de inspiração sertaneja à experiência de uma expedição de sete dias realizada em 1970, pelo sertão de Pernambuco e Paraíba, numa perua cujo motorista que o convidou, tinha sido contratado para recolher mestres violeiros e repentistas, para conduzi-los até um grande congresso desses virtuoses que seria realizado em Campina Grande, na Paraíba. Guilherme conta essa estória, de maneira mítica, como “a viagem da procura do Pavão Misterioso”. Trinta anos depois, essa experiência única, decantando-se no espírito do poeta, e cristalizando-se, produziria o nascimento deste cordelista inusitado, cujos poemas, extremamente profundos, originais e belos, freqüentemente trágicos, mas ao mesmo tempo de grande lirismo, contendo também momentos de muito humor, poderíamos chamar de pequenas obras-primas.
O autor ainda teve a excelente idéia de reuni-los numa atraente caixinha de madeira, com título e ilustração na tampa, e original fecho de cadarço de couro, evocando os dos gibões dos vaqueiros; que ele, ironicamente denominou “Kit Cordel”, objeto que vem encantando as pessoas que o conhecem, podendo-se dizer que trata-se já de um novo sucesso do pintor e poeta. Essa obra foi adquirida já pela Biblioteca do Congresso em Washington, a maior e mais importante biblioteca do mundo, e por bibliotecas de universidades americanas, como a New Mexico University Library , USA., entre outras. (Vide “New Aquisitions List “ June 2005, Guilherme de Faria, Romances de Cordel), no Google.
(Texto de A. W.)

domingo, 24 de janeiro de 2010

ROMANCE DA VIDÊNCIA (Cordel de Guilherme de Faria)




Romance da Vidência
(Cordel de Guilherme de Faria)



1
Preparem a sua emoção
Para um caso do Destino
Vou usar todo o meu tino
Pra cantar sem violão.

2
Só preciso achar o tom,
Que a música deste poema
Cria seu próprio sistema
De silêncios e de som.

3
Havia nesta divisa
Uma cigana arretada
O seu nome era Rafisa
Parecia alumiada.

4
Tinha o dom da profecia
Mas, cassandra malfadada
Era sempre acreditada
Só depois que acontecia

5
Aí houve o incidente,
Que chegou no seu terreiro
Um capiau renitente
Que era um pobre ferreiro.

6
Vinha montado sem sela
E embora fosse cascudo
Era bonito e parrudo
Sem papos nem xurumela.

7
Rafisa (quase esquecia)
Era um pouco desgrenhada,
Também tinha a latumia
De uma Medusa da estrada.

8
Quer dizer: era bonita
E até muito faceira
Descontada a cabeleira
E a saia sarapintada.

9
O matuto desmontou
E tirou o chapéu de couro
Parou um pouco e olhou
Com aqueles olhos de mouro.

10
“Siá Rafisa, venho vindo
De muito longe, seguindo
A fama de vosmecê,
Queira pois me recebê.

11
Venho da Pedra Preta
Um raso onde num chove
Desde a noite do cumeta
Que ainda o povo comove.

12
Mas num vim pedir trovão
Que num é de sua alçada
É lance de coração
Ou de vida amargurada.

13
Me deixa entrá que lhe esprico
Siá Rafisa, ocê me escuta,
E se falo, não discuta
Que se calo, me comprico.”

14
Rafisa olhou o matuto
De cima a baixo e botou
A mão no colo e virou
Com aquele ar arguto

15
E na mesa da cozinha
Sem a bola de cristal
Sentou depois da voltinha
Com seu jeito sensual.

16
“Como digo a vosmecê
Ando muito agoniado
Duma paixão sem mercê
Por um sonho inalcançado.

17
Ela se chama Lazinha
E nem sabe que eu existo,
Filha do coroné Xisto
Tar quar uma princesinha.

18
Quando passa amuntada
Joga moeda no ar
Pra meninada catar
No meio da gritaiada.

9
Um dia chegou na frágua
Pedindo um pouco de água
Bebeu sem me oiá, pensei,
Ou fui eu que não oiei

20
A não ser, pro seu pezinho,
Carçado cuma alpercata
Fina, de ouro e prata
Mostrando aqueles dedinho

21
Que prestei muito sentido,
Para minha perdição
O segundo mais comprido
Que o primeiro, como a mão.

22
Depois disso, ó minha mágoa,
Só brinca de esconde esconde:
Já não quis mais pedir água
Na casa deste visconde.

23
Siá Rafisa, me diga
O que faço pra arrancá
Do meu peito essa urtiga,
Pra dessa paixão me livrá?”

24
A cigana reparou
Nos olhos do capiau
Botou cartas e apontou
Um modesto dois de pau.

25
“Hóme,” disse a cigana,
“Tá escrito aqui tão claro,
E essa carta não me engana,
Que não vou nem cobrar caro.

26
A coronelinha vai
Beber água em sua palma
Mas num posso dizer mais
Pelo bem da minha alma.”

27
O matuto se afastou
Semeado de esperança
E pra sua forja voltou
Terminada a sua andança.

28
Uma semana passada,
Voltou ele galopando,
Parecendo alma penada,
E chegou logo gritando:

29
“Siá Rafisa, bota a sorte
Que quero o dia saber
E a hora da minha morte
Para o quanto vou dever

30
Porque de hoje não passo:
A moça veio beber
Da parma deste palhaço
Mas foi de tanto sofrer

31
No momento do trespasso.
Caminhou mais de três légua
Sangrando quase sem trégua
Pra vir morrer no meu braço.

32
Baleada no pulmão
Por um pretendente em mágoa,
Morreu bebendo da água
Da parma da minha mão!”

FIM

12/07/2001

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Mundo, mundo, vasto mundo

"Mundo, mundo, vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo"
seria só um versinho imundo...
Mas como foi o Drummond
Todo mundo acha bom.

(Guilherme de Faria, rsss)

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Cordel para a Dona Sinhá (de Guilherme de Faria)



Cordel para a Dona Sinhá (de Guilherme de Faria)

(a partir das lembranças de Eliana Tavares de Mattos,
minha esposa, natural da cidade de Barretos)


1
Pelos idos dos cinqüenta
Na minha saudosa Barretos
Tinha eu quase por parenta
A Dona Sinhá, sem netos,

2
Sem filhos, sem quase nada,
Mas que não pude esquecer
Os ditos e a gargalhada
Que ela tinha a oferecer.

3
Ah! Ela tinha um sobrinho
Que era escritor também
De que me lembro, o Zingo,
Mas Dona Sinhá é que vem

4
Sempre na minha memória
Com a sua alegria
E cuja singela história
Só posso contar em poesia.

5
Velhinha espirituosa
Merece que eu cite agora
Sua verve, comum embora,
Em contexto... saborosa.

6
Se se falava em quireras,
Ou conversa fora jogada,
Tratava como quimeras:
“Nada vez nada... nada!”

7
Ou se estava complicado
A gente explicar o porquê
De algum fato inusitado
Ela ajudava você

8
Dizendo em tom cabal:
“Pelos vinte e cinco motivos
Não é? Fulano de tal...
E começavam os risos.

9
Se meu pai que era sovina
Embora fosse bom homem
Nos negava a tubaína,
Ela, com um sorriso jovem:

10
“Tando guardado tá bom!”
Não é, querida Eliana ?
Dizia alto e bom som,
Num humor nada sacana,

11
Pois não havia julgamento
E sim grande aceitação
Pelo outro em seu momento,
Do jeito que as coisas são.

12
Se alguém se achava esperto
Mas se fazia de tonto
Dizia rindo, de pronto:
“Piquitinho dos óio aberto!”

13
Isso porque ela amava
Sobretudo a cachorrada
Que em sua casa cuidava
Apesar de questionada

14
Uma vez por seu Américo,
O marido num momento
Irritado, quase histérico:
“Ou eles ou eu, nu’m güento!”

15
Nos contou, estupefatos,
Pois séria ela respostou:
“Então... eles, cães e gatos!
Disse ao velho... e ele ficou.

16
Mas seu Américo também
Era figura engraçada
Sociável como ninguém,
De pijama na calçada

17
De tardezinha chegado
Do trabalho e então banhado
Vestia o “fardão” listado,
Seu descanso antecipado,

18
Na sua cadeira inclinada
Em equilíbrio precário
Jamais no entanto quebrada,
Nesse seu risco diário.

19
Mas eu era mesmo fã
Da velhinha e sua irmã,
Dona Inácia, paralítica
Santa, mirrada e raquítica

20
Que pegara, e não é óbvio,
O humor sem negação
Pelo diário convívio
Com esse ser de exceção,

21
A Dona Sinhá com seus ditos,
Lugares comuns da cultura
Mas pela experiência benditos
De uma alma em sua candura.

22
“Deus é pai, não é padrasto”
Dizia a torto e a direito,
Mas notável era o efeito
E nos renovava o cadastro

23
Na repartição do Mestre
Que às vezes por nosso orgulho
De ser sem asa e pedestre,
Tratávamos como um entulho.

24
“Pra se conhecer alguém
É preciso comer junto
Um "saco de sar" e sem
Fazer cara de presunto.”

25
“Formiguinha é bom pros óio”,
Trazendo um bolo dizia,
Como um cavalo de “tróio”
Mas que a gente bendizia


26
Porque era tão gostoso
Sabendo que mal não fazia.
Não como o presente famoso
De que a gente nem sabia.

27
A velha tinha um cãozinho
Que se chamava Martelo
E quando um menininho
Que se chamava Marcelo

28
Atropelado foi, confundia
(desculpem-na o paralelo)
Gritando, e a mim me arrepia:
“Foi-se, foi-se o Martelo!"

29
E do Zuza, de fama pão-dura,
Meu pai, que me dava medo:
“Dinheiro é assim, cê segura
Por aqui e sai pelos dedo.”

30
“Cardo de galinha e precaução
Nunca fez mal a ninguém”
Dizia, fazendo menção
Ao perigo rondando alguém.

31
E sempre, como a receita
De um tesouro verdadeiro,
Dizia assim: "Aproveita
Que o Bráz é tesoureiro."

32
Mas devo também mencionar
No fim dessa missa laica
A sua cadela Laika
Pra a Rússia homenagear.

33
Esta era a Dona Sinhá
Que é ‘tar e quar” que lembro
Naquelas tardes de lá
Dos dias do meu Setembro...

FIM

15/12/2009

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Esta ilustração de abertura do blog é o detalhe de uma xilogravura de Guilherme de Faria , que ilustra o folheto do autor com sua visão pessoal sobre o tema já classico do Pavão Misterioso do sertão nordestino. Vide abaixo a ilustração completa:


e o detalhe:

sábado, 26 de setembro de 2009

Versão inglesa do Romance da Vidência


Capa do folheto de cordel Romance da Vidência, com xilogravura de Guilherme de Faria

Em homenagem a uma interessante senhora de meia-idade americana (de quem não me lembro o nome) e que conheci numa loja de arte de amigas minhas na rua Augusta, e que tendo se declarado entusiasta da arte popular brasileira e colecionadora de folhetos de cordel nordestinos (seria ela uma " brasilianist"?) recebeu de mim de presente um exemplar deste Romance da Vidência, publico aqui esta minha tentativa de versão para o idioma inglês, desse cordel que é considerado por muitos como a minha obra-prima. Perdoem-me os conhecedores da língua de Shakespeare os eventuais erros e impropriedades que possa ter cometido. Reconheçam, se possível, o esforço requerido nesta empreitada: verter para um outro idioma que nem sequer domino sem dicionário, com métrica e rima o meu próprio original. Notem que para manter métrica e rima sem trair a essência do poema, eu tive que recorrer a uma "transliteração" criativa. O resultado pode ter ficado parecido com uma balada irlandesa, mas a ideía é justamente essa, encontrar uma equivalência ou aproximação de espírito popular entre as duas culturas: a nordestina brasileira e a celta.

(e.mail de contato: guilhermedefaria@gmail.com)

Divination Cordel

(by Guilherme de Faria, from Brazil, translated from the portuguese by the author)


1
Behold, o might emotion,
To an odd folk tale!
(I’d rather sing and sail
On a clear slow motion...)

2
I only need a sound
To beguin my chants.
Give a penny or a pound
It certainly enchants.

3
Once upon a time
Was a gipsy or “gitan”
And not only for the rhyme
She was not a puritan.

4
Rafeesa was her name
An she had a bad fate,
But she never had the blame,
She was not a being of Hate.

5
She’d power of divination,
But unfortunate Cassandra,
Misbelieved by her nation
As if she was a “salamandra”.

6
Than it happened one day
That arrived an ironsmith
From a place far away,
That had heard about her Mith.

7
He was but a horse fly
And although being dirty
Was a handsome guy
That was only about thirty.

8
Rafeesa (almost forgot)
Had a fame of very hot
Since guys were affected
By her graceful aspect.


9
But this man of small future
Took off his hat of leather,
He stood and looked better
With those eyes of moor.

10
“Eh laho, Lady Raffesa,
I came from far away
Searching a smile of Monalisa
Since the "Ides of May”.

11
“I came from Blakstone,
A county where never rains
Since the night of the stone
That felt on the plains”.

12
“Let me speak, you’ll understand,
Lady Feesa, hear these guy,
When I talk, don’t contend,
If I stop my mind will fly”.

13
So Raffesa looked at the man
From his head to his feet,
Shook her hand like a fan
And not like when we meet.


14
And sat on her favorite chair
Without the crystal ball
As she only need some air
And had not some help to call.

15

“I’ll tell you my intension:
I’m very, very distressed
By a tormented passion
Of a dream I’ve no access”.

16
“She is called Lisamel
And not even knows I exist,
With her admirers in a list
Her father is a colonel”.

17
“When she passes by on riding
Throws lots of coins in the hall
To the kids running and finding
In the middle of their howl”.

18
“She stops at the furnace
Asking for a cup of water,
And she drinks, o pretty face!,
Without looking to this brother”.

19
“And I stay seeing her shoes
That is really a golden sandal
Showing those little toes
With the second larger: scandal!”

20
“After than, O sorrow of mine!
She would never ask my aid.
She did not want the wine
I provide to my maid!"

21
Rafeesa fixed those eyes
And quickly laid down the cards,
Than signed the one that lies
Although surely she retards.

23
“Man”-said Lady gitan-
“Its written here so clear
That the fate is already done
And you must have no fear”.

24
“Vessel maid comes to shore.”
“Soon she’ll drink on your palm
But I can’t say no more
So you can just be calm.”


25
The ironsmith moved away
Sowed of much a hope,
Taking back soon his way
To his "Forgery & Masterstroke".

26
Passed by only a week
He came back in a gallop
Like a soul lost and weak,
With his anguish in the top.

27
“ Lady Feesa, show me please,
My cards, to know, and soon
The sure day I will decease
Cause I’ll not see this moon.”

28
“I’ll pay back the offsetting
Cause my maid saw my palm
Drinking water in my setting,
But in agony, without a salm.”

30
“In the timing of her death
She rode many a yard
To finally find the rest
In the face of her card.”


31
“Shoot down in her breast
By a pretender in sorrow,
She drunk with no tomorrow
In my palm... at last!”

THE END




Romance da Vidência
(Cordel de Guilherme de Faria)


1
Preparem a sua emoção
Para um caso do Destino
Vou usar todo o meu tino
Pra cantar sem violão.

2
Só preciso achar o tom,
Que a música deste poema
Cria seu próprio sistema
De silêncios e de som.

3
Havia nesta divisa
Uma cigana arretada
O seu nome era Rafisa
Parecia alumiada.

4
Tinha o dom da profecia
Mas, cassandra malfadada
Era sempre acreditada
Só depois que acontecia

5
Aí houve o incidente,
Que chegou no seu terreiro
Um capiau renitente
Que era um pobre ferreiro.

6
Vinha montado sem sela
E embora fosse cascudo
Era bonito e parrudo
Sem papos nem xurumela.

7
Rafisa (quase esquecia)
Era um pouco desgrenhada,
Também tinha a latumia
De uma Medusa da estrada.

8
Quer dizer: era bonita
E até muito faceira
Descontada a cabeleira
E a saia sarapintada.

9
O matuto desmontou
E tirou o chapéu de couro
Parou um pouco e olhou
Com aqueles olhos de mouro.

10
“Siá Rafisa, venho vindo
De muito longe, seguindo
A fama de vosmecê,
Queira pois me recebê.

11
Venho da Pedra Preta
Um raso onde num chove
Desde a noite do cumeta
Que ainda o povo comove.

12
Mas num vim pedir trovão
Que num é de sua alçada
É lance de coração
Ou de vida amargurada.

13
Me deixa entrá que lhe esprico
Siá Rafisa, ocê me escuta,
E se falo, não discuta
Que se calo, me comprico.”

14
Rafisa olhou o matuto
De cima a baixo e botou
A mão no colo e virou
Com aquele ar arguto

15
E na mesa da cozinha
Sem a bola de cristal
Sentou depois da voltinha
Com seu jeito sensual.

16
“Como digo a vosmecê
Ando muito agoniado
Duma paixão sem mercê
Por um sonho inalcançado.

17
Ela se chama Lazinha
E nem sabe que eu existo,
Filha do coroné Xisto
Tar quar uma princesinha.

18
Quando passa amuntada
Joga moeda no ar
Pra meninada catar
No meio da gritaiada.

9
Um dia chegou na frágua
Pedindo um pouco de água
Bebeu sem me oiá, pensei,
Ou fui eu que não oiei

20
A não ser, pro seu pezinho,
Carçado cuma alpercata
Fina, de ouro e prata
Mostrando aqueles dedinho

21
Que prestei muito sentido,
Para minha perdição
O segundo mais comprido
Que o primeiro, como a mão.

22
Depois disso, ó minha mágoa,
Só brinca de esconde esconde:
Já não quis mais pedir água
Na casa deste visconde.

23
Siá Rafisa, me diga
O que faço pra arrancá
Do meu peito essa urtiga,
Pra dessa paixão me livrá?”

24
A cigana reparou
Nos olhos do capiau
Botou cartas e apontou
Um modesto dois de pau.

25
“Hóme,” disse a cigana,
“Tá escrito aqui tão claro,
E essa carta não me engana,
Que não vou nem cobrar caro.

26
A coronelinha vai
Beber água em sua palma
Mas num posso dizer mais
Pelo bem da minha alma.”

27
O matuto se afastou
Semeado de esperança
E pra sua forja voltou
Terminada a sua andança.

28
Uma semana passada,
Voltou ele galopando,
Parecendo alma penada,
E chegou logo gritando:

29
“Siá Rafisa, bota a sorte
Que quero o dia saber
E a hora da minha morte
Para o quanto vou dever

30
Porque de hoje não passo:
A moça veio beber
Da parma deste palhaço
Mas foi de tanto sofrer

31
No momento do trespasso.
Caminhou mais de três légua
Sangrando quase sem trégua
Pra vir morrer no meu braço.

32
Baleada no pulmão
Por um pretendente em mágoa,
Morreu bebendo da água
Da parma da minha mão!”

FIM

12/07/2001

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Soneto português de devoção (de Guilherme de Faria)


Para Alma Welt

Apesar de não gostar muito de guerra
Por Joana D’Arc tenho grande devoção,
Me perdoem os ingleses e a Inglaterra
Que queimaram esta guerreira em Ruão.

Por outro lado, detestando os alcagüetes
Tenho certa pena do infeliz
Do escolhido e pobre Iscariotes
Que não virou maldito porque quis.

Mas uma heroína que me encanta
É a Maria, a melhor das Madalenas
Que quando puta pra mim já era santa.

E entre todos os bons heróis covardes
Gosto mais de São Pedro e suas penas
De galos triplos, orelhas e quo vadis...

12/06/2009

* galos triplos- alusão ao galo que cantou tres vezes quando São Pedro por covardia renegou o Cristo já aprisionado, quando lhe perguntaram se o conhecia.

* orelhas-
alusão ao episódio de São Pedro cortando a orelha de um dos soldado que vieram acompanhando os sacerdotes do templo para prender Cristo no Horto das Oliveiras.

*... quo vadis- Para quem não sabe, Cristo, depois de morto apareceu na Via Apia caminhando em direção a Roma quando São Pedro se afastava da cidade por essa estrada a conselho de seus discípulos que estavam sendo presos e martirisados no Coliseu a mando de Nero. O apóstolo teria perguntado então ao Cristo: Quo vadis, Domine? (Aonde vais, senhor?). E Jesus respondeu: "Estou indo a Roma para ser novamente crucificado, visto que abandonas meu rebanho". Então São Pedro virou-se e voltou à Roma, onde logo nos portões foi preso e em seguida crucificado de cabeça para baixo a seu próprio pedido. Na verdade esta estória não está nos Evangelhos e pertence a uma tradição oral que foi divulgada literariamente pelo polonês Henrik Sinkiewsky no seu magnífico romance histórico Quo Vadis, transformado em filme por Hollywood nos anos 50, com Peter Ustinov no papel de Nero. Alma Welt amava este romance e escreveu um fascinante soneto (O Quo Vadis da Alma) inspirado no episódio de Ligia, a heroína cristã do romance, amarrada nua às costas de um touro, no Coliseu, sendo salva pelo gigantesco Ursus, seu fiel servidor germânico. Entretanto, temo que explicando tanto eu tenha tirado toda suposta graça do meu soneto (rss)

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Romance do sobrevivente (cordel de Guilherme de Faria)

Sou, amigos, paciente,
Digo mais: sobrevivente!
Escapei de peste vária
Como a da gripe aviária;
Não fui morar em Angola,
Escapei do surto ebola.

Driblei a Aids, isso sim,
Passei ao largo da dengue,
Mas resfriado, ai de mim,
Fiquei molinho e perrengue.
Continuei vivo contudo
E fui passear na Argentina,
Fui chamado de "boludo",
Vivo à custa de aspirina.

Mas dessa gripe suína
Na certa estou na mira
Minha máscara é muito fina,
A do vizinho é melhor
Antes que a gripe confira
Vou comprar uma maior.

Mas, Deus, estamos perdidos
Desde a expulsão do Éden
Fazendo tudo o que pedem
Os locutores sabidos
Que inventaram a roda
E comandam vida e moda
Para quem lhes der ouvidos...

domingo, 22 de março de 2009

Sonetos da Sertaneja (de Guilherme de Faria)


capa do folheto de cordel "Sonetos da Sertaneja", com xilogravura de Guilherme de Faria


Sonetos da Sertaneja
(de autoria de Guilherme de Faria)


Soneto do amante rarefeito

1
De moça eu tive um amante
Agora já tão distante
Que o cisco do seu olhar
Já não consigo lembrar.

Do seu peito a caixa preta
Que guardava o coração
Perdeu-se sob a marreta
Que destruiu meu porão.

A coluna ta faltando
E o quadril eu nunca vi
Mesmo quando tava amando

Quanto à flauta da canela
Tô dando por falta dela
Que a embocadura eu perdi.



2
Outrora, se me recordo
Fiz co’o diabo um acordo:
Amores que nunca morrem
Dinheiro, paz, nessa ordem

Mas a paz, por derradeira
Foi que perdi de primeira
Pois um amor duradouro
Brilha bem mais que ouro.

E um amor encontrei
Que até ouro eu desprezei
Dando-o a ele quase inteiro

E o resto, que guardei
Nunca mais eu avistei,
Que os enterrei no terreiro.



3
Amores, sonhos, casinha
Crianças correndo em volta
As panelas na cozinha
Uma vida sem revolta,

É tudo o que eu sempre quis
No tempo da escolinha,
E escrevi no quadro a giz
Quando isso ainda tinha.

Mas minha professorinha
Não corrigiu uma linha
E esqueceu de me ensinar

Que amores, sonhos, casinha
Eram coisas que eu já tinha,
Só podia abandonar...




Variante do Soneto do Amor Rarefeito

4
Tive um parceiro dileto
De quem guardei o esqueleto,
Tinha um cisco no olhar
Que isso não pude guardar.

Tinha um furinho no queixo
Do qual eu nunca me queixo
Conquanto ficou no chão
De areia do chapadão.

Quanto ao resto do amante
Está faltando o importante:
O osso do seu quadril

Que em vida nunca faltou
Ao osso do meu, servil,
Que sempre subjugou.




5
Encontrei o meu jagunço
Numa festa de furdunço.
A noite toda beijou-me,
De manhã abandou-me.

Passado um ano ou mais
Ele voltou, veio atrás
De um beijo que faltou
E assim que me viu cobrou.

Agora eu o sigo direto
Embora, infeliz , tenha o veto
De toda a jagunçada,

Andando distante uma légua
Atrás da tropa, montada
Na pobre da minha égua.




6
Atravessei minha vida
Como a esse chapadão,
Com pouca água e comida
Senão as do próprio chão.

Raízes, pó, macaxeira,
Coisas duras de roer,
Os sonhos que nem peneira
Sob a água do viver.

Mas qual boa garimpeira
Recolhi na minha batéia
Uma pepita lampeira

Que iluminou minha vida
Como se eu fosse uma atéia
Amorosa, fiel, atrevida...




7
Venho por essa caatinga
Desde longe, noutro mundo
Onde havia uma restinga
À beira de um rio fundo.

Abandonei o meu rancho
Que era qual paraíso
Por ter perdido o juízo
Por causa de um pobre Sancho

Que nem tinha o Don Quixote
(por esse eu não correria
nem atrás do meu dote)

Que de maluca já basta
Esta pobre parceria
Que no deserto se arrasta.




8
Encontrei o meu destino
Numa festa de Chegança
Não plantei, não fiz criança,
Não foi Festa do Divino.

Sete anos só de zona
Na cidade de Ouro Fino,
Outros tantos pra ser “Dona”
Que eu só era “a do Rufino”.

Rufião é o que ele era
E gostava de bater
Pois que nisso ele era fera.

No final, depois de um tiro
Arrependeu-se ao morrer,
Ao que muito me refiro.




9
Eu nunca avistei o mar
Mas faço dele uma idéia:
Um lagão a se agitar
Tremendo que nem geléia.

Um bando de peixe escarlate
E um peixão muito feroz;
À borda, feito arremate,
Renda branca de retrós.

Eu prefiro imaginar
Que tenha coisas mais finas
Sem sair do meu lugar

Pois prefiro nunca vê-lo
Se tiver que deixar Minas
Ou ir além de Curvelo.

FIM

03/08/2004



Sonetos da Sertaneja II
(de Lima Duarte- MG
Versos de Guilherme de Faria)

Em Lima Duarte vim
Duartina me criei:
Me apaixonei, ai de mim!
Por alguém que virou frei.

Na rua da Prefeitura
Namorei, sentei na praça;
Sou mineira, moça pura,
Não neguei a minha raça.

Fiz das tripas coração,
Nos seus votos o meu véu
Não era de contrição

Pois na Rádio Cascavel
Dediquei-lhe uma canção
Que falava do meu mel.




Sonetos da Sertaneja II
(de Lima Duarte- MG
de Guilherme de Faria)

2
Nasci em Lima Duarte
Nunca quis sair da toca
Sou mineira e dest’arte
Nem conheço Ibitipoca.

Já que sou zona da Mata
Não me mata de vergonha,
Não queira me pôr na zona
Que assim ocê me mata.

Respeite meu sentimento
Que sou só de dar broinha
Não tenho arrependimento.

E morando em Paradinha
Não mudei, não me dei ares
Na Francisco Valadares.



Sonetos da Sertaneja II
( Dos Sonetos da Paradinha, Lima Duarte,
de Guilherme de Faria)

Quem me vê assim quietinha
Nesta rua em Paradinha
Se espanta que eu não me queixe
Das Dores do Rio do Peixe.

Mas é que a Nossa Senhora
Que é a dona dessas dores
Vela pela minha hora
De sorrir pros meus amores.

Assim eu vivo a vidinha,
Conformada, na aparência,
Mas por dentro uma rainha

Que espera o seu patrono,
Paciente, sem urgência,
Pra retornar ao seu trono.

FIM

05/08/2004

Romance do Galo(cordel de Guilherme de Faria)


Capa do folheto Romance do Galo, com xilogravura de Guilherme de Faria


1
Vou contá agora um causo
Que ninguém mais qué contá
Decerto devido ao descauso
Do pouco assunto que dá.

2
É que o pobre do Zequinha
Cismava de pé ou sentado
Ciscando sempre, coitado,
No terreiro com as galinha

3
Cutucando co’a varinha
Talvez de desenfastio
Ou pra dá ao tempo linha
Pra poder pegar o fio

4
A taperinha caiada
Já tinha sete menino
E a muié sempre embuxada
Cum mais um que tava vino.

5
Haverá de acontecê
Arguma coisa uma hora!
Num era possíve sê
Só essa vida caipora.

6
De repente observô
O galo naquele terreiro
E desta vez de primeiro
Muito inté lhe adimirô.

7
No meio da área vazia
Ele mantinha imponência:
Seu brio num esmorecia
Do harém tinha tenência.

8
Sempre de peito estufado
A crista muito vermelha
Barbelas de macho safado
E penas da cor da telha.

9
Parecia estar posano
Sempre e sem descanço
Se exibindo desfilano
Até c’um passo de ganso.


10
No calor desse terreiro
Quar bigorna de ferreiro
Onde nem inseto havia
Esse galo se exibia.

11
Zequinha então entrô
Na taperinha um instante:
Debaixo da cama tirô
Uma mala c’um barbante.

12
Era a mala do casório
Co’a Dasdô, coitada,
Que há muito tava encostada,
Do tempo do suspensório.

13
Pegô o terno de risca
Camisa de colarinho
Gravata sem deseínho
Vermeia que os óio pisca.

14
Vestiu o terno e a gravata
De casimira barata,
Amassada em desalinho
Que ele esticô um pouquinho.



15
Quando botô o lenço
Branco naquele bolsinho
Desse terno azul marinho
Foi ficando meio tenso.

16
Aí empinô o peito
E tava quase ino embora
Quando viu o par de espora
Pendurado junto ao leito.

17
Afivelô nas botina
De modo meticuloso
E assim todo garboso
Se sentindo gente fina

18
Se ergueu em toda linha
Vortô a empiná o peito
Foi saino sastifeito
Atravessando a cosinha

19
Cum as espora tinindo
Tava macho, tava lindo
Andando sem se voltá
Os óio sem desviá

20
Viu a sua Dasdô
C’o Junio no colo em riba
Da sua grande barriga
Mas por ela ele passô

21
Enquanto aquela turminha
Das criança na cozinha
Abria uma gritaria
Saudando essa alegoria.

22
E o Zequinha foi pisô
No terreiro e então andô
Pra frente sem se vortá
Sem nem em vorta oiá

23
E garboso caminhano
Tinindo aquelas espora
Foi o campo atravessano
Visíve por uma hora.

24
Até que o vulto distante
Naquela linha ondulante
Que o calor reverbera
Em vorta daquela tapera


25
Foi ficano meio vago
Até sumí por encanto
Para aquele meu espanto
Que ainda no peito trago...

FIM

05/02/2003

sábado, 14 de março de 2009

Romance do Coronel e a Donzela


Capa do folheto de cordel "Romance do Coronel e a Donzela",com xilogravura de Guilherme de Faria


1
Pr’essa seleta audiência
Vou contar quase uma lenda
D’uma donzela Laudência
Que vivia na fazenda.

2
Prometia desde a infância
Aquela beleza rasgada
Que iluminou essa estância
Como vela encomendada.

3
Correndo da cozinha
Pro terreiro e pro cercado
Pra tratar cabra e galinha
E voltando pro sobrado,

4
Dormia com sua tia
E também com uma prima.
No catre ela se espremia
Sem lhes perder a estima.

5
Os grandes leitos da casa
Viviam sempre vazios
Como se tivessem brasa
Ou se fossem muito frios,

6
Que o coronel Zé Simão
Tinha munheca de vaca
Não repartindo o pão
Para não gastar a faca.

7
Quando a pobre arrumava
Esses leitos infecundos
A coitadinha deitava
Neles por uns segundos,

8
Fingindo-se adormecida
Numa cama de dossel
Sonhando uma outra vida
Debaixo de um outro céu

9
Onde, princesa encantada
Ela seria levada
Por um príncipe vaqueiro
Pra longe desse terreiro

10
Para um rancho acastelado
Cercado de muito gado,
De vaquinha com torneira
E galinha poedeira.

11
Pulava então, assustada,
Com medo de ser flagrada
Em crime de fantasia
De beleza ou monarquia.

12
Mas Laudência cresceu
Botou corpo e “embeleceu”
Foi ficando apetitosa
Coisa muito perigosa,

13
Quer dizer, desabrochou,
Sua beleza então ficou
Um tanto meio ostensiva
Doendo na carne viva

14
Do desejo do patrão,
O coronel Zé Simão
Que há muito enviuvara
Sem fazer florir a vara

15
Como o José da escritura,
Que este José caradura
De santo não tinha nada
E sua vida era “privada”...

16
Mas a donzela expedita
Quando servia na sala
Cafezinho pr’a visita,
Não parecia vassala.

17
Era sempre confundida
Embora simples vestida,
Pois que se vê pelo pé
Quem é nobre ou pangaré.

18
E a donzela Laudência
Que morava no porão
Tinha toda a aparência
De uma filha de patrão:

19
Os tornozelos fininhos
E delicados pesinhos
Que pisavam no assoalho
Como gata no borralho.

20
Mas o tempo deu a Laudência
Uma cota de seis meses
De paz, depois dos seus treze,
Que o patrão tinha urgência.

21
Como a tia vigiava
E era boa cozinheira
O patrão diz que casava
Ou fazia companheira.

22
É que o velho apaixonou-se
Ficou zoró e babou-se
Coma idéia de colher
A flor de tanto prazer.

23
Foi  só casar decidir
Pra seu filho retornar
À casa para exigir
O que era seu pra herdar

24
Já que a mãe é que era rica,
Filha de um general
(sua morte não se explica
e ainda cheira muito mal).

25
O filho era um doutorzinho
Criado na capital,
Não se dava com o paínho
Ou se dava muito mal.

26
Arretado de bonito
Botou o olho em Laudência
Cuja bela aparência
Aumentou com o espevito

27
Pois a moça nele viu
O príncipe do seu sonho
E embora fosse bisonho
Esse amor evoluiu.

28
O rapaz reinvindicava
A fazenda e algo mais:
Três quartos dos animais,
Que com a moça se casava.

29
A casa então estalava
Com o ódio que exalava
Dessas paredes fatais
Com pai e filho rivais.

30
No meio dessa tensão
A tia da pobre Laudência
Fraquejou do coração
E fez ver a sua ausência.

31
Pai e filho amparavam
Até o cemitério
A moça e lhe segredavam
Promessas de refrigério.

32
Mas água caiu demais
Sem esfriar o rancor
Desses corações rivais
Divididos pelo amor

33
Dessa moça pueril
Que nunca na vida viu
A verdadeira nobreza
Que já tava em sua beleza.

34
Ela então se decidiu
Pelo filho do patrão
Um bom noivo nele viu,
Que era moço e bonitão.

35
Resolveram então fugir
Para poder se casar
Que a onça estava a rugir
E ameaçava saltar.

36
Mas não chegaram direito
Na porteira da fazenda
Que o velho já tinha feito
Pr’a jagunçada a encomenda:

37
Surgiram de todo lado
E abateram à paulada
O cavaleiro encantado
E a moça foi levada

38
De volta pro casarão
E trancada no porão
Lacrado durante o dia
Como o lacre que ainda havia.

39
O povo da região
Diz que o velho coronel
Descia àquele porão
De noite com um farnel

40
E subia ao amanhecer
Pra na varanda sentar
Olhando o alvorecer,
Tentando purificar

41
A sua alma sombria
Que qual carcará vigia
Seu reino desse sertão
De trevas e solidão.

42
Agora peço perdão
A esse meu auditório
Que com tanto palavrório
Perdi a medida e a mão

43
Contando causo escabroso
Que é melhor nem ser contado.
Quem cala, diz o ditado,
Traz presente valioso.

44
Mas sendo um conto de fada
Posso concertar um pouco
E dizer que tava louco
Com a versão apresentada,

45
Pois o moço não morreu:
Tava ferido e viveu
Escondido na palhoça
De um casal que o recolheu

46
E voltou daquela roça
No seu cavalo Himeneu
Chegando mesmo justinho
Para salvar o selinho.

47
O coronel que era um bruxo
Deu um estouro e babau,
Mas ainda deu-se o luxo
De virar um bacurau

48
Que vive cantando agouro
No mourão dessa porteira
Para o fado duradouro
Do amor dessa parelha

49
Que agora vive contente
No casarão povoado
De crianças adoidado,
Com até cama patente.

FIM
18/02/2003

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Romance do Mágico (cordel de Guilherme de Faria)

1
Nascido numa aldeia
Que em sua simplicidade
Não chegava a ser feia
E nem era uma cidade

2
De tão pequena e singela
Onde o povo ainda come
Com a mão e na tigela,
Conquanto não passe fome.

3
Não tinha pois novidades
Entra mês ou saia mês
A não ser enfermidades
Ou a morte de uma rês,

4
Também de alguma tia,
(que era tudo parentalha),
Mas a dor se alguém morria
Era só fogo de palha.

5
E assim tempo passara,
Eu já tava com dez anos,
Ainda não chegara
O tempo dos desenganos.

6
Então chegou frente à escola
Um carro com auto-falante
Em cima de grande cartola,
Repetindo a todo instante:

7
“Hoje é dia de magia!”
“Conheçam o grande Faruque,
O mago que a gente espia
E não descobre seu truque!”

8
“É magia Abracadabra,
Não tem mistificação!”
(adorei a conjunção:
mistifica ou então abra...)

9
“Às sete horas da noite
Na sala da escolinha.
Mas que ninguém se afoite,
Avisa a professorinha"

10
"A quem "o Mago de Angola"
Agradece a gentileza
E o uso de sua mesa
Para pousar a cartola!”

11
E assim naquela tardinha,
Tremendo de excitação
Fui ver aquele que tinha
O segredo da emoção,

12
De negro vestido e cartola,
Com capa preta e vermelha,
Com aquela alta gola
Que a do "cujo" se assemelha.

13
O homem era elegante
E ainda trazia um anão
Com um bufante calção
E uma espécie de turbante.

14
Mas na hora da função,
Sendo muito alta a mesa
Para o pobre do anão,
Chamou a dona Tereza

15
Nossa professorinha
Que era linda de amar
(e nisso estava sozinha)
Para ser sua auxiliar.

17
Deu-lhe a sua cartola
E fez ela nos mostrar
Virando a cuja no ar
E até pondo na cachola

18
O que fez a gente rir
(ah! que graça ficou!)
E depois a entregou
Para o anão repetir.

19
De volta na mão do mago
Que tirou uma garrafinha,
Levou à boca num trago
Virando o resto que tinha

20
Dentro daquela cartola
Que começou a brotar
“Como os frutos da escola!”
(não deixou de proclamar).

21
E de repente, kabou!
Aquele pequeno arbusto
Sumiu para nosso susto
E uma pomba voou.

22
Foi um delírio na sala,
Eu chorava de beleza,
Mas a dona Tereza
Essa então nem se fala!

23
Mas depois de outros lances
Que não vou nem descrever
Nada mais foi como antes,
Mas pelo que se vai ver:

24
Todos com ar jucundo
Voltamos, sonhando um dia
Fazer aquela magia
E andar aí pelo mundo.

25
E dormi como quem goza
Depois de muito excitado
Para ser só acordado
Com uma notícia espantosa:

26
Dona Tereza sumira,
A nossa professorinha!
Com o mago ela fugira,
Deixando o anão na escolinha

27
Onde até hoje é o bedel,
Não de calção bufante
Mas ainda de turbante,
Que ele mantém, fiel.

28
Nunca mais se ouviu falar
Do mágico e da Tereza
Mas qual príncipe e princesa
Eles teimam em me ficar.

29
Mas o anão, coitado,
Que fora abandonado,
Nem se mostra ressentido,
Entre nós fora acolhido.

30
E se a gente lhe pedia
Revelar truques do mago,
Repetia, meio vago:
“Sedução... amor... magia...”

FIM

18/12/2008

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Romance do sangue e da água (cordel de Guilherme de Faria)


1
Não era um sítio isolado
A nossa terrinha antiga
Mas sem cabeças de gado,
Sem horta, que nada irriga.

2
Só cabras mascando coisas
Que nem sei se são raízes
Confinando com os Soizas
Com seus dois ou três Luizes.

3
Havia pouco em disputa
Mas sangue vinha na boca
E o gosto era de luta
E não se dormia de touca.

4
Por “dá lá aquela palha”,
E palha não faltava
Já que tudo esturricava,
Soa um tiro, outro ali falha.

5
Eu já tava descorçoado
De viver daquele jeito
Trazia uma bala no peito
E duas aqui do lado.

6
Mas em compensação
Já perdera dois dos filhos
E eles dois dos Luízes,
Que eram cinco os infelizes.

7
Já não se podia andar
A esmo por esta senda
Pois a bala das crianças
Era vendida na venda

8
E não era bala de mel
Ou de celofane o papel,
Mas de chumbo e amarga
Com direito de recarga.

9
E foi aí que eu quis
Chamar o velho Luiz
Para um duelo de morte
Que nos decidisse a sorte.

10
Desde que o que sobrasse
Então por honra adotasse
O filhos do falecido:
Nem vencedor, nem vencido.

11
O mais incrível, hoje vejo,
É que o Luiz velho aceitou
E comigo duelou,
Que era só um percevejo

12
Na cama dele, mais rico,
Que não tinha nem um tico
De medo, mas sim ganância,
Enquanto eu, arrogância.

13
Mas eu sabia que ao menos
Sua palavra mantinha
Até pelo orgulho que tinha,
O resto era de somenos.

14
E assim, de madrugada
Com a arma engatilhada
Nós fomos para a restinga
Seca como a caatinga

15
Mas eis que na chapada
Foi trovão que ecoou
E chamou a sua amada
Que sobre nós desabou

16
E encheu o leito seco
Que até mesmo desbordou
Cobrindo de verde e esterco
A horta que então vingou.

17
E o gado por milagre
Que pastava e paria
Devolvia pra Maria
O leite que lhe faltou.

18
Na chuva nos abraçamos
O velho Luis e eu
Juntando o dele e o meu
E só balas não plantamos

18
Jogando elas no rio
Como peso para anzol
Pois um novo arrebol
Encerrava o desvario.

19
E juntamos os dois Luizes
Com os meus dois Joões,
As Marias e seus botões
E estes velhos narizes

20
Que já não andavam erguidos
Farejando nosso sangue
Que agora está contido
Na alma como num mangue.

21
Formamo uma só família,
O velho Luiz finou,
Também a minha Maria,
Fiquei com a que restou.

22
Foi assim que a água veio
E que o sangue refluiu
Neste sertão que era feio
Quando reinava o fuzil

Neste mamilo de seio
Que o povo chama Brasil...

FIM

14/12/2008

Romance do papa-velório (cordel de Guilherme de Faria)



Romance do papa-velório

(cordel de Guilherme de Faria)

1
Pra esta platéia atenta
Não vou contar causo triste,
Mas um pra quem se contenta
Com pouco mais que um chiste.

2
Sei que a morte é causo sério,
Não gosta de quem co'ela brinca,
O riso logo se trinca
Quando diante do Mistério.

3
Freqüentava aqui o Empório
Um macabro empedernido
Chegado em defunto e velório
E de viúva o gemido.

5
Enterro, então? Prato cheio!
Para o Osório era um festão,
Que se punha ali no meio
Ou num’alça do caixão.

6
Depois, na beira da cova
Queria dar uma mão
Uma pá de terra nova,
Um berreiro e uma oração.

7
Mas sobretudo discurso,
Que nisto ele era mestre,
Embora das letras pedestre
E educado como um urso.

8
Foi então que nos morreu
O velho padre Tadeu
Envolto em sua batina
Branca como parafina.

9
Tinha fama de santinho,
Uma vida em castidade,
Nenhum fio de descaminho
Verdadeira santidade.

10
Ah! Lá estava o Osório!
O primeiro no velório
De terno preto o finório,
De gravata e suspensório.

11
Tudo de praxe correndo
Se não fosse a choradeira
Quando se abriu a torneira
Do besteirol tremendo.

12
Voavam pombos e flores,
Auréolas de santidade,
Nada de simples amores,
Mas Virtude e Castidade.

13
Mas não foi esse o problema,
Até aí, tudo bem...
Mas empolgado c’o tema
Osório foi mais além

14
E começou a contar
Suas próprias confissões
Para se vangloriar
Das tais absolvições

15
De que o padre era pródigo
E as modestas penitências,
Contrariando o código,
E nada de abstinências.

16
Logo a cidade inteira
Era toda desnudada
Não havia bandalheira
Que não fora perdoada.

17
Padre Tadeu pronto e presto
Perdoara até o prefeito
Em sua eleição de cabresto
E seu coreto malfeito

18
Que desabara c’o vento
E o relógio da torre
A girar como num porre
Parecendo um catavento.

19
Depois os vereadores
Todos eles grão-senhores
Numa aldeia de dores
Pobrezas e maus odores.

20
Quanto à nossa burguesia
(até aqui isso medra...)
Não sobrou nenhuma pedra
Dentro dessa sacristia.

21
Começou a revolta
Correria e empurrões
Até alguns palavrões
E a chegada de uma escolta

22
Para levar o Osório
De volta pro nosso Empório
Que ficou co’a triste fama
De urdir e jogar lama.

23
Desde então o “velorista”
(velador que desvelou)
Como que se aposentou
E só vive de entrevista

24
Quando chega alguém de fora
Vamos logo apresentando:
Esse é o nosso Osório
Que acabou com o velório

25
Do santo da nossa vila
Junto com a reputação,
Se não da população
Mas dos notáveis em fila.

26
Vocês perguntam, meus filhos,
Como o Osório conhecia
Os podres e os pecadilhos
Que por dentro acontecia?

27
É que o santo padre bebia
No nosso Empório e curtia
Contar pra nós os pecados
Dos poderosos e honrados

28
Que no domingo ajoelham
Naquele confessionário
Para abrir o relicário
Onde todos se assemelham!

FIM
14/12/2008

sábado, 13 de dezembro de 2008

Romance da barca furada (Cordel de Guilherme de Faria)



Romance da barca furada (Cordel de Guilherme de Faria)

(No man is an island... (John Donne 1572-1631)


1
Contarei coisas do povo
Com o mesmo entusiasmo,
Não vou repetir de novo
(Que é puro pleonasmo).

2
Não me canso de contar
Causos que admirei,
Que pude testemunhar
E os que eu mesmo inventei.

3
Este é um que considero
Que a verdade está nele,
Não há o que se assemelhe
Mais à mentira que o vero.

4
Vive naquela ilha
Um sujeito amargurado
Por ter perdido a família
Num barco velho e furado.

5
Há anos a travessia
Era feita ao continente
Pra buscar uma bacia,
Pra buscar cama patente.

6
Tudo naquela barca
Era trazido de longe
Uma cuia ou uma arca,
Jovem padre ou velho monge.

7
Genivaldo, nosso homem
Vivia daquele barco
Pois lá as pessoas comem
Sem nem fabricar um arco.

8
Quero dizer, dependentes
Dessa civilização
Para uma faca ou um pão,
E pra palitar os dentes.

9
Mas Genivaldo contava
Com sua barca querida
Que no entanto não cuidava
Com a atenção devida.

10
Nunca de tinta um demão,
A barca arquejava e gemia,
Esturricava e pedia
Por um pouco de alcatrão.

11
Até que naquele dia
Sua mulher quis ver a tia
E aproveitar pra trazer
Mais um pouco o de comer

12
Já que de peixe e farinha
Ela e a filha estavam fartas,
Precisando menos linha
E mais tinta para as cartas.

13
Aboletadas no barco
Com chapéu e a melhor roupa
As duas seriam marco
De mudança, ainda que pouca,

14
Que se fez naquela ilha
Depois que mãe e filha
Em sua última travessia
Sumiram sem garantia

15
Pois a verdade é que não
Vieram a dar nas praias
Os corpos e aquelas saias
Que virariam canção.

16
Genivaldo então virou
Aquele santo eremita
Que o contato humano evita,
Que não mais se procurou.

17
Nem barca e nem família,
Nem tesoura, nem um banho
No meio daquela ilha
Que ao menos teve um ganho

18
Pois começaram a plantar
E seus potes fabricar
Em honra à mãe e filha
E ao homem santo da ilha.

19
Por isso, apesar do ranço
Não há injustiça no mundo
Pois para haver avanço
Alguém tem que ir ao fundo...

20
Ou então fugir das Ilhas
Que muito perto ou a milhas
Isolam a alma e a mente:
Somos todos Continente!

FIM

13/12/2008